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Diofanto, a álgebra e a linguagem

Uma página da Aritmética de Diofanto
Fonte: Wikimedia Commons

Isso é grego para mim! Não é assim que falamos quando não entendemos alguma coisa? Agora observe a imagem acima, uma página da Aritmética, de Diofanto de Alexandria (c. 201/215 — 285/299): não só é grego, como também matemática…

Diofanto escreveu sua Aritmética por volta do ano 250. É um livro que trata principalmente das soluções em números inteiros de equações com uma ou mais indeterminadas. Um exemplo bem simples seria a equação 3x - 2y = 1, solucionada quando fazemos, digamos, x = 3 e y = 4, uma entre infinitas soluções. Mas as coisas eram um pouco mais avançadas do que esse simples exemplo sugere.

Observe novamente a imagem no início deste post. Onde estão os números e todo aquele conjunto de símbolos a que fomos acostumados na escola? Onde estão as equações? Como aquilo pode ser chamado de matemática? Essas questões apontam para discussões ligeiramente diferentes das que estamos acostumados a ver em livros de história da matemática e mesmo aqui neste site. Uma busca pela internet nos oferece muitos comentários sobre a Aritmética de Diofanto, interessantíssima em si mesma, mas tomaremos caminhos laterais para discutir um assunto frequentemente preterido nos manuais técnicos e nos livros didáticos de matemática: a linguagem das ideias matemáticas e de sua cristalização em um conjunto funcional de símbolos.

Não foi Diofanto o primeiro a usar abreviações de palavras ou as próprias palavras como signos com um significado matemático. Os egípcios já faziam isso, e essa tradição estava presente em Alexandria, uma cidade egípcia que se manteve sob o domínio grego por séculos e séculos. Mas o problema é saber por que as palavras comuns do dia a dia não são suficientes para expressar pensamentos matemáticos. E por que todas as culturas, quando tiveram que lidar com conceitos matemáticos, precisaram criar novos símbolos ou adaptar símbolos já existentes?

Veja a tabela a seguir. Ela mostra a notação moderna e a notação de Diofanto. O que é notável é que não conservamos a notação de Diofanto, assim como não conservamos muitas notações criadas durante a história.

É possível que a notação atual seja substituída por outra mais coerente no futuro. Sabemos que a notação matemática é histórica, ou seja, forjada aos trancos e barrancos para lidar com as ideias e conceitos à medida que são criados. Sabemos também que seus símbolos são polissêmicos, tomando vários significados segundo os contextos em que aparecem. As expressões 3 – 2 e \frac{3}{2} contêm os mesmos elementos, mas o traço significa coisas diferentes nas duas. Bastou que os números se posicionassem de forma diferente para o interpretarmos ora como sinal de subtração, ora como de divisão e ora como de razão. Mas o traço em si é o mesmo.

Além desse problema, a notação matemática parece depender da espacialidade, da possibilidade de escrevermos em todas as direções na folha. Também há problemas com a notação das funções, como a inconsistência do uso do expoente 2 nas expressões \cos^2 x e \cos x^2, o que sempre confunde os alunos. Sem dúvida, tradicional não significa melhor.

É possível ver a álgebra simbólica como uma máquina que pode ser manipulada sem que o apelo a um significado seja necessário. A álgebra é o que alimenta a computação moderna, dadas suas regras claras e simples. Por não exigir compreensão, mas apenas manipulação, é a álgebra que acaba figurando como “matemática” na cabeça da maioria dos alunos, que decoram e operam pilhas de regras sem sentido para encontrar o resultado de problemas que não sabem interpretar.

Discussão

  1. Em 1621, o matemático francês Claude Gaspard Bachet de Mériziac (1581 — 1638) editou a Aritmética de Diofanto, em latim e grego. Pierre de Fermat (1601 — 1665), o matemático amador mais celebrado de todos os tempos, possuía um exemplar dessa edição. Conta-se que, em uma de suas leituras, ao lado de um problema algébrico, Fermat escreveu nas margens de sua cópia: “Se um número inteiro n for maior que 2, então a^n + b^n = c^n não terá soluções para inteiros a, b e c diferentes de zero. Tenho uma prova verdadeiramente maravilhosa dessa proposição, mas essa margem é muito estreita para a conter.” Esse é o conhecido Último Teorema de Fermat, demonstrado em 1995 pelo matemático inglês Andrew Wiles. Mas a questão aqui é outra: Fermat lia um livro escrito 1.400 anos antes. Será que o ensino de matemática seria mas bem-sucedido, e os alunos mais criativos, se pudessem ler as obras originais dos matemáticos?
  2. Que outros problemas com a linguagem matemática você consegue identificar? Você chegou a ter problemas com ela?
  3. Até mesmo em aulas de geometria, problemas são frequentemente traduzidos em álgebra e resolvidos mecanicamente, sem nenhum apelo a noções geométricas ou intuições espaciais. Seria a álgebra, pelo seu caráter mecânico e regular, a origem da morte do significado nas aulas de matemática?

Para saber mais

O que significam os termos

  • sinal
  • símbolo
  • polissemia
  • linguagem
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História da matemática

Eratóstenes, seu crivo e a circunferência da Terra

Primos gerados pelo crivo de Eratóstenes
Fonte: tiny.cc/crivo-eratostenes

Eratóstenes de Cirene (276 a.C. — 194 a.C.), assim como Euclides, foi bibliotecário da famosa Biblioteca de Alexandria, onde escreveu sobre matemática, astronomia, geografia e gramática, além de ter exercido seu estro poético na composição de vários poemas. Veremos aqui duas de suas mais conhecidas contribuições científicas.

A primeira trata da criação de um algoritmo para identificar números primos. Números primos são números divisíveis apenas por 1 e por si mesmos. 17 é um número primo, pois você consegue dividir 17 apenas por 1 e pelo próprio 17. Já 18 não é primo, pois pode ser dividido por 1, 2, 3, 6, 9 e 18. Euclides já havia demonstrado, no livro 9 de seus Elementos, que números primos são infinitos, mas uma questão permanecia: como saber se um dado número é primo?

Eratóstenes teve uma ideia bastante engenhosa para determinar quais números de uma lista de inteiros consecutivos são primos. Para acompanhar o raciocínio, sugiro que você faça o experimento prático: escreva uma lista de números começando de 1 até 100. Você pode escrever quantos números quiser, mas a ideia é apenas entender como o algoritmo funciona. Uma lista inicial de 100 números é suficiente.

Inicialmente, risque o número 1. Agora, faça um círculo no 2, o primeiro primo, e risque da lista todos os múltiplos de 2, como 4, 6, 8, 10, 12 e assim por diante, até o fim da lista. Agora faça um círculo no próximo número não riscado, que é o 3, e corte da lista todos seus múltiplos, como 6, 9, 12, 15 e assim por diante, até o fim da lista. Não importa se alguns números já estejam riscados, como o 6 e o 12, pois o importante é riscar todos os múltiplos de 3. Agora, observe o próximo número não riscado, que é o 5, e risque todos seus múltiplos, como 10, 15, 20, 25 e assim por diante, até o fim da lista. Repita esse processo até não haver mais números na lista. O que restará serão todos os números primos entre 1 e 100, exatamente como a figura nos mostra.

O crivo de Eratóstenes foi o primeiro processo sistemático e mecanizado (um algoritmo) para descobrir números primos. Embora não seja muito bom para lidar com números extremamente grandes, ele deu partida na busca de algoritmos mais eficientes que decidam se um determinado número é primo ou não. Esses esforços estão na raiz de nosso mundo tecnológico: é a extrema dificuldade de se saber se um dado número enorme é primo ou não o que garante a segurança das comunicações na internet. Até que matemáticos descubram um algoritmo para resolver o problema em pouco tempo, você pode se sentir tranquilo em entrar o número de seu cartão de crédito em sites respeitáveis — pelo menos até um vírus sorrateiro infectar o seu computador!

Outro grande feito de Eratóstenes foi a medição da circunferência da terra, reconhecidamente redonda por filósofos de gerações anteriores. Muito embora esse fato fosse lugar comum entre os cientistas da época, nenhum deles havia conseguido dizer o quão grande ela era. Coube a Eratóstenes, usando matemática elementar, determinar com bastante precisão sua circunferência.

A história é conhecida. Eratóstenes observou que, ao meio dia de 21 de junho, o sol atinge o ponto mais alto do céu em Alexandria. Observou também que uma estaca fincada no chão produzia uma sombra, e que o ângulo entre a estaca e os raios de sol era de 7,2 graus (aproximadamente 1/50 de uma circunferência). Ele sabia também que em Siena (atual Assuã, no Egito), afastada de Alexandria por cerca de 800 km, a luz do sol não produzia sombras no mesmo dia e à mesma hora, pois era possível vê-lo refletido bem no fundo de um poço. Assim, bastou que ele multiplicasse 50 por 800 para estimar em cerca de 40.000 km a circunferência da Terra. O esquema abaixo pode dar uma ideia do que pensou Eratóstenes.

Esquema imaginado por Eratóstenes.
Fonte: Cosmociência

Sabemos hoje que o valor real da circunferência da Terra, se medido ao redor do equador, é de 40.075 km — uma diferença mínima do valor calculado por Eratóstenes!

Discussão

  1. Números primos estão no coração da matemática, figurando de maneira central no Teorema Fundamental da Aritmética. Esse teorema afirma que todo número inteiro maior ou igual a 2 pode ser escrito de uma única maneira como um produto de números primos, sem considerar a ordem em que aparecem. Por exemplo, 60 pode ser escrito como 2.2.3.5 e, se ignorarmos a ordem desses números, essa é a única maneira como 60 pode ser escrito como uma multiplicação de números primos. Embora pareça elementar, a importância desse resultado nunca é suficientemente ressaltada. Você conseguiria descobrir por que, afinal, esse teorema é tão importante?
  2. Uma famosa conjetura (um teorema ainda não provado) da matemática, chamada de conjetura de Goldbach, diz que todo número par maior ou igual a 4 pode ser escrito como a soma de no máximo dois números primos. Por exemplo, 12 = 5 + 7 e 20 = 7 + 13. Uma excelente maneira de treinar números primos com alunos é fazê-los escrever todos os números pares de 4 a 100 como somas de 2 números primos. Vocês seria capaz de realizar essa tarefa?
  3. Terraplanistas acreditam que a terra não é redonda, apesar de Eratóstenes ter calculado sua circunferência com espantosa precisão há mais de 2.200 anos atrás. Você acha que a introdução desse tópico nas aulas de ciências ajudaria a reduzir o número de terraplanistas em nossa sociedade?

Para saber mais

Procure saber mais sobre os seguintes assuntos:

  • algoritmo
  • número primo
  • Teorema Fundamental da Aritmética
  • conjetura de Goldbach
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História da matemática Matemática

Pi

\pi sendo calculado pelo método da exaustão de Arquimedes.
Fonte: Clipartmax

Com as possíveis exceções do 0 (zero) e do 1 (um), nenhum outro número é mais conhecido na matemática do que a constante \pi (pi). Também nenhuma outra tem uma história tão fascinante.

Seu valor é aproximadamente 3,1415926… . Sua história é bem remota e deve ter começado em situações cotidianas. É possível, por exemplo, que povos antigos tenham observado que uma volta da roda de carroça faz a carroça avançar mais ou menos três vezes o valor do diâmetro da roda. É assim que \pi passa a ser definido, como o número de vezes que devemos multiplicar a medida do diâmetro para encontrarmos a medida da circunferência. Matemáticos gostam de uma definição equivalente: \pi é a razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo.

Matemáticos egípcios e mesopotâmicos conheciam bem o \pi. No papiro de Rhind, \pi tem o valor aproximado de 3,16045, enquanto os matemáticos da Mesopotâmia usavam o valor 3,125. Depois que estudiosos perceberam sua importância em praticamente todos os campos da matemática, a busca pelo seu valor exato deu início a uma das mais longas tradições científicas, o cálculo preciso de suas casas decimais. E essa luta continua firme e forte: em 29 de janeiro de 2020, Timothy Mullican alegou em seu blog ter batido o recorde mundial, com o cálculo de 50 trilhões (!) de casas decimais.

\pi é um número irracional. Não pode ser escrito como a razão (divisão) de dois números inteiros. Embora a fração 22/7 dê \pi com uma boa precisão (3,142857, com as casas decimais se repetindo indefinidamente), sabemos que não existe uma fração que gere todos os seus dígitos, ainda que frações sempre mais próximas possam ser encontradas. \pi também é um número transcendente, ou seja, não é a raiz de nenhuma equação polinomial com coeficientes inteiros, como, por exemplo, x^2-5x+6=0. Isso coloca \pi em uma categoria especial de números estranhos e interessantes.

\pi é uma letra grega, o que nos faz supor que foram os gregos os primeiros a utilizá-la para batizar a constante 3,1415926…. Mas esse é um engano comum: foi o matemático galês William Jones (1675 — 1749) que a nomeou assim, em um artigo de 1706. Por que \pi? Porque essa é letra que tem o som de p na língua grega, e a primeira letra da palavra periferia. A história dos símbolos e da notação matemática é tema pitoresco que teremos a oportunidade de abordar ainda outras vezes.

Agora olhe para a figura no início desta postagem. A primeira figura, mais à esquerda, nos mostra uma circunferência na qual está inscrito um pentágono regular e circunscrito outro. Conseguimos calcular o perímetro do pentágono inscrito sabendo apenas o valor do raio da circunferência, assim como também conseguimos calcular o perímetro do pentágono circunscrito sabendo apenas do valor do raio. Mesmo sem os valores em mãos, podemos conjeturar acertadamente que o perímetro do pentágono inscrito é menor do que o perímetro da circunferência, e também que o perímetro do pentágono circunscrito é maior do que o perímetro da circunferência. Assim, o valor do perímetro da circunferência deve ser algum número entre esses dois valores.

Mas ainda é um valor muito ruim. E se aumentássemos o número de lados dos polígonos regulares inscritos e circunscritos para, por exemplo, como nos mostra a figura, para 6 e 8? Não nos parece que esses polígonos estão se transformando, eles mesmos, em uma aproximação da circunferência? Se conseguimos calcular o valor dos perímetros dos polígonos, podemos imaginar que, aumentando o número de lados, conseguiremos aproximar o valor de \pi com quanta casas decimais quisermos. De fato, esse é o mecanismo básico do chamado método de exaustão, utilizado com sucesso por Arquimedes de Siracusa (c. 287 — c. 212 a.C.) e matemáticos posteriores para solucionar uma infinidade de questões semelhantes. Em particular, esse método era usado para realizar quadraturas, o cálculo de áreas de figuras curvilíneas, o que nos informa que o método da exaustão é um dos precursores da moderna integração.

Madhava de Sangamagrama (c. 1350 — c. 1425), o fundador da Escola de Matemática e Astronomia de Kerala, na Índia, é apenas um das centenas de matemáticos hindus frequentemente ignorados por historiadores. Ainda que tenhamos aprendido a reconhecer a genialidade de matemáticos não-europeus, foi apenas há pouco tempo que reconhecemos uma genial descoberta desse genial indiano, a série de Madhava: \frac{\pi}{4} = 1\ -\ \frac{1}{3} + \frac{1}{5}\ -\ \frac{1}{7} + \frac{1}{9}\ - \ldots Mas o que essa série tem de especial?

O valor de \pi sempre foi relacionado a questões geométricas, em especial àquelas envolvendo circunferências. Mas a fórmula de Madhava não faz nenhuma referência a círculos ou figuras curvilíneas. É uma série infinita, um conjunto infinito de números que, se somados, nos dão 1/4 do valor de \pi. Assim, devemos a Madhava a “libertação” de \pi de suas humildes origens geométricas para adentrar no mundo da análise matemática, da álgebra e da estatística, aparecendo aqui e ali de maneira fantasmagórica e surpreendente. Alguns séculos depois, essa série foi redescoberta pelo matemático alemão G. W. Leibniz (1646 — 1716). Hoje a série é conhecida por historiadores modernos como série de Madhava-Leibniz, ou apenas como série de Leibniz por matemáticos eurocêntricos empedernidos.

Discussão

  1. O cálculo de \pi é um hobby nerd muito apreciado por programadores de computador e por competidores de campeonatos de memorização, capazes de recitar essa constante com centenas e centenas de casas decimais. Você consegue imaginar algum outro motivo que faz com que cientistas ainda se interessem pelo seu cálculo?
  2. Existe uma certa ansiedade de professores em ensinar as origens e o valor de \pi. O peso da quantidade descomunal de conteúdos e da exiguidade do tempo e do interesse dos alunos fazem com que a maioria fracasse e acabe estimulando uma decoreba desenfreada de tudo que trate de matemática. Você conseguiria imaginar uma atividade significativa que ensinasse a importância e as origens de \pi sem apelar para nenhum tipo de memorização?
  3. Alguns matemáticos sugeriram a introdução de uma outra constante, chamada \tau (tau), no vocabulário dos matemáticos, valendo duas vezes o valor de \pi. Assim, entre muitos outros argumentos, a fórmula da circunferência do círculo, C = 2\pi r se tornaria simplesmente C = \tau r, revelando melhor a natureza da relação entre a circunferência e o raio do círculo, que é muito mais utilizado do que seu diâmetro. Pesquise um pouco sobre a \tau e responda: será que o acréscimo dessa constante no vocabulário matemático resolveria algum tipo de problema de ensino?

Para saber mais

Acesse a Wikipedia para conhecer mais sobre

  • número irracional
  • número transcendente
  • método da exaustão
  • quadratura
  • série infinita
  • Madhava de Sangamagrama e a matemática indiana
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História da matemática

Euclides e seus Elementos

Fragmento dos Elementos no papiro de Oxirrinco (c. 100 d. C.)
Fonte: tiny.cc/elementos-euclides

Euclides (fl. c. 300 a.C.) foi um importante matemático grego que viveu em Alexandria, no Egito. É considerado popularmente como o “pai da geometria”, ainda que esse epíteto esteja errado em cada palavra.

Pouco se sabe sobre sua vida, exceto que desenvolveu sua obra sob o reinado de Ptolomeu I do Egito (323 – 283 a.C.). Mais do que geometria elementar, Euclides escreveu sobre a teoria dos espelhos, ótica e astronomia esférica. Mas é pela sua obra máxima, chamada de Elementos, que ele se imortalizou, exercendo a mais duradoura influência no pensamento humano jamais alcançada por outro cientista.

Euclides é melhor denominado como o sistematizador do método axiomático, a maneira de ordenar o conhecimento baseado em axiomas e teoremas. O método axiomático, que funciona muito bem na matemática, consiste em fundamentar todos os fatos sobre determinados objetos em cima de uma diminuta base de afirmações primitivas conhecidas como axiomas. A partir dos axiomas, novas afirmações são derivadas — os teoremas — por um poderoso motor intelectual cujas peças são as regras da lógica. Foi através desse método que Euclides ordenou em treze livros boa parte do conhecimento matemático elementar de sua época.

Os Elementos, traduzidos pela primeira vez diretamente do grego por Irineu Bicudo, e publicado no Brasil pela Editora da Unesp em 2009, está dividido em 13 livros:

  • O livro 1 contém 23 definições, 5 postulados e 9 noções comuns, e cobre tópicos importantes da geometria plana, como o teorema de Pitágoras, igualdade de ângulos e áreas, paralelismo, soma dos ângulos de um triângulo e a construção de várias figuras geométricas;
  • O livro 2 contém vários lemas (teoremas preparatórios para outros teoremas) relativos à igualdade de retângulos e quadrados, às vezes chamados de “álgebra geométrica”, e conclui com uma construção da proporção áurea e uma maneira de construir um quadrado com área igual a qualquer figura plana;
  • O livro 3 trata de círculos e suas propriedades. Mostra como encontrar seu centro, tratas de ângulos inscritos, tangentes, potência de pontos, e o teorema de Tales;
  • O livro 4 constrói o incírculo e o circuncírculo de um triângulo, assim como mostra a construção de polígonos regulares com 4, 5, 6 e 15 lados;
  • O livro 5, o primeiro dos chamados livros aritméticos, trata de proporções de magnitudes, apresenta a teoria altamente sofisticada da proporção, provavelmente desenvolvida por Eudoxo de Cnido (408 a.C — 355 a.C);
  • O livro 6 aplica a teoria das proporções à geometria plana, especialmente na construção e no reconhecimento de figuras semelhantes;
  • O livro 7 trata da teoria dos números elementares: divisibilidade, números primos e sua relação com números compostos, o algoritmo de Euclides para encontrar o maior divisor comum e como encontrar o mínimo múltiplo comum;
  • O livro 8 trata da construção de sequências geométricas de números inteiros;
  • O livro 9 aplica os resultados dos dois livros anteriores e prova a infinidade de números primos e apresenta a construção de todos os números perfeitos pares;
  • O livro 10 prova a irracionalidade das raízes quadradas de números inteiros não quadrados, como a raiz de 2, e classifica as raízes quadradas de segmentos incomensuráveis ​​em treze categorias distintas. Euclides apresenta o termo irracional, com um significado diferente do conceito moderno de número irracional. Ele também fornece uma fórmula para produzir ternas pitagóricas;
  • O livro 11 generaliza os resultados do livro 6 para figuras sólidas: perpendicularidade, paralelismo, volumes e semelhança de paralelepípedos;
  • O livro 12 estuda os volumes de cones, pirâmides e cilindros usando o método da exaustão, um precursor da integração, e mostra, por exemplo, que o volume de um cone é um terço do volume do cilindro correspondente. Conclui mostrando que o volume de uma esfera é proporcional ao cubo de seu raio (na linguagem moderna), aproximando seu volume por uma união de muitas pirâmides;
  • O livro 13, por fim, constrói os cinco sólidos platônicos regulares inscritos em uma esfera e compara as proporções de suas arestas com o raio da esfera.

Boa parte desses conteúdos são contribuições de matemáticos anteriores. A Euclides são reputados diversos resultados originais e muitas demonstrações, inclusive a belíssima demonstração do teorema de Pitágoras. Mas como foram ordenados todos esses conhecimentos?

Euclides começa o livro 1 com uma série de 23 definições controversas, como “ponto é aquilo de que nada e parte”, “linha é comprimento sem largura” e outras 21 definições. Logo depois, enuncia os 5 seguintes postulados, que modernamente chamamos de axiomas:

  1. Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto.
  2. Também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta.
  3. E, com todo centro e distância, descrever um círculo.
  4. E serem iguais entre si todos os ângulos retos.
  5. E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça ângulos interiores e do mesmo lado menores do que dois retos, sendo prolongadas as duas retas, ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual estão os menores do que dois retos.

Dos postulados acima, o quinto é o mais estranho e também o mais importante. Não tem a aparência de uma afirmação elementar, e nos faz suspeitar que seja um teorema deduzido dos postulados anteriores. De fato, foi isso o que matemáticos de todas as épocas tentaram: mostrar como deduzir o quinto postulado dos quatro anteriores. Esses esforços redundaram em geniais fracassos, mas ocasionaram o desenvolvimento das geometrias não-euclidianas, geradas quando o quinto postulado é substituído por outros. As geometrias não-euclidianas, longe de serem filhas de especulações desinteressadas de matemáticos puros, são usadas hoje em muitas áreas da tecnologia, principalmente na teoria da relatividade de Albert Einstein (1879 — 1955), que, entre outras coisas, garante o bom funcionamento do sistema de GPS em todo o planeta.

Após esses postulados, Euclides apresenta as “noções comuns”, nove axiomas supostamente aplicáveis a todos os ramos do conhecimento, como, por exemplo, “o todo é maior do que a parte” e “os dobros da mesma coisa são iguais entre si”. Sobre essa base de definições, postulados e noções comuns, centenas e centenas de teoremas são demonstrados, em um encadeamento lógico que encanta e convence.

Os Elementos tratam de matemática elementar, mas sua leitura não é nada fácil. A tradução de Irineu Bicudo, a primeira feita diretamente do grego, é tão idiossincrática, por assim dizer, que podemos considerá-la uma obra destinada a eruditos: só é recomendada para quem deseja aprender o grego de Euclides comparando-o com o português de Bicudo. Mas foi essa mesma a intenção do tradutor: estabelecer um padrão ouro para a tradução de textos da antiguidade grega. Esperamos que, futuramente, uma boa alma retraduza os Elementos tornando-o palatável a um público mais geral. E enquanto isso não ocorre, vamos refletir mais um pouco sobre algumas questões pertinentes aos Elementos e seu uso científico.

Discussão

  1. O método axiomático é uma das grandes conquistas da ciência ocidental. Sua aplicação em áreas diversas da matemática chegou a produzir intuições profundas sobre uma espantosa quantidade de assuntos. No entanto, ainda que persista na matemática, ele está bastante desgastado em outras disciplinas. Por que não seria esse o método ideal, por exemplo, para ordenar nossos conhecimentos médicos?
  2. A história do ensino de matemática é a história de um longo fracasso. Será que isso é devido à falta de uma organização escolar mais estrita de seus conteúdos, uma que favoreça as ligações internas e profundas entre eles?
  3. Observe as lista de conteúdos dos treze livros. Quais deles você acha que deveriam ser ensinados no ensino básico? Por quê?

Para saber mais

Pesquise uma pouco mais sobre os seguintes assuntos:

  • axiomas
  • lemas
  • teoremas
  • método axiomático
  • geometrias não-euclidianas
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Pitágoras e os pitagóricos

O teorema de Pitágoras e sua demonstração (em grego)
Fonte: tiny.cc/teorema-pitagoras

O teorema de Pitágoras é, sem dúvida, o mais conhecido teorema de toda a geometria, ensinado em todas as escolas e utilizado extensamente em toda a matemática. A pessoa à qual é atribuído, o filósofo grego Pitágoras de Samos (c. 570 — c. 495 a.C), no entanto, é bem menos conhecida.

Figura semilendária do século VI a.C., Pitágoras foi o líder de uma seita que acreditava, entre muitas outras coisas, que os números — puros, livres e incorruptíveis — eram alguma coisa próxima de entidades divinas, possuidoras de consciência e de influência direta na vida prática dos homens. Pitágoras e seus discípulos, conhecidos como pitagóricos, estão também entre os primeiros cientistas a exigir argumentos racionais para diversos fatos matemáticos conhecidos como teoremas. Eles deram início, juntamente com Tales de Mileto (c. 624 — 546 a. C.), considerado o primeiro filósofo ocidental, à forma de matemática dedutiva que hoje estudamos nas universidades.

A figura acima é a famosa demonstração do teorema de Pitágoras assim como aparece no longamente decantado livro Elementos, de Euclides de Alexandria (fl. c. 300 a.C.). A demonstração, no entanto, não é de Pitágoras, mas do próprio Euclides. Pitágoras não demonstrou com toda generalidade o teorema que leva o seu nome, mas apenas percebeu sua validade em casos particulares. Também não foi seu descobridor: os matemáticos mesopotâmicos conheciam as ternas pitagóricas e quase certamente conheciam sua expressão geométrica, assim como os egípcios, também excelentes geômetras.

Não se conhece nada que Pitágoras tenha escrito. Uma longa tradição lhe atribui muitos feitos, muitas descobertas, mas as primeiras obras escritas sobre sua vida só apareceram cerca de… 800 anos depois de sua morte! Em outras palavras, quase tudo o que se sabe dele e de sua fraternidade é fruto de transmissão oral, um telefone sem fio bastante persistente, mas nada confiável. Platão (428 — 348 a.C.), o grande pai da filosofia ocidental, foi profundamente influenciado pela tradição pitagórica. E daí, pela influência de Platão, temos o pitagorismo ainda evidente em nossa cultura.

Segundo a tradição — ao falarmos de Pitágoras, estaremos sempre nos referindo a essa tradição — Pitágoras e seus discípulos não foram simples místicos em busca de um ritual, mas também cientistas sagazes. Eles observaram, por exemplo, que cordas vibrantes tocadas juntas produziam sons harmoniosos, agradáveis ao ouvido, se seus tamanhos mantinham razões expressas por inteiros, preferencialmente pequenos, como 1/2, 2/3 e 3/4. A teoria musical que ainda hoje estudamos teve início com essas simples observações.

Os pitagóricos estudaram também propriedades dos números figurados, como os números triangulares, retangulares e pentagonais, sugerindo diversas relações entre eles. Descobriram os números perfeitos, aqueles que são a somas de seus divisores próprios, como o 6 (divisores próprios: 1, 2 e 3, e daí 6 = 1 + 2 + 3) e 28 (divisores próprios: 1, 2, 4, 7 e 14, e daí 28 = 1 + 2 + 4 + 7 + 14).

Essa sanha aritmética levou Pitágoras a afirmar que “tudo é número”, um dogma religioso rapidamente refutado pela famosa crise dos incomensuráveis. De maneira simplificada, essa crise se originou com a descoberta de que números como a raiz quadrada de 2 ou de 5 não podem ser expressos como uma razão (divisão) entre dois números inteiros. No fim do choque criado por essa descoberta, a sociedade pitagórica não existiria mais, mas sua poderosa influência criativa pode ser sentida ainda hoje em diversos campos das artes, da filosofia e das ciências.

Discussão

Os pitagóricos estão no fundamento e no coração de muito do que veio a ser conhecido como filosofia ocidental. Sua história continua a inspirar místicos e cientistas, admirados com a candente originalidade de suas contribuições. E como tudo na história, os pitagóricos levantam diversas questões:

  1. Juntamente com Tales de Mileto, Pitágoras e seus discípulos introduziram na matemática os primeiros exemplos de argumentos puramente racionais conhecidos como demonstrações. Os povos mesopotâmicos e egípcios não chegaram a conhecer tais instrumentos intelectuais. Será, então, que a ideia de demonstração deveria ser ensinada nas escolas, uma vez que muito da matemática utilitária de que necessitamos sobrevive sem ela?
  2. Em sua opinião, existe alguma relação necessária entre matemática e misticismo, ou isso é apenas uma característica particular dos pitagóricos?
  3. A numerologia que vemos em livros e sites da internet, promovendo poderes extraordinários de certos números, é uma descendente contemporânea do misticismo aritmético pitagórico. Você consegue imaginar algum argumento concreto que a justifique?

Para conhecer mais

Você saberia dizer o que significa, com segurança, o que é:

  • demonstração
  • teorema
  • matemática dedutiva
  • número figurado
  • incomensuráveis