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História da matemática

O papiro de Rhind

Um trecho do papiro de Rhind (c. 1650 a.C.)
Fonte: tiny.cc/papiro-rhind

Por volta de 1.650 a.C., um certo escriba egípcio chamado Ahmes (ou Amósis) finalizou aquela que seria não a mais antiga, mas a mais notável obra de matemática egípcia de que temos conhecimento: um livro escrito sobre uma imensa folha de 5,5 metros por 30 cm de altura, feita com tiras prensadas do caule de uma planta chamada papiro. Finalizada a escrita, essa longa folha era então enrolada e transportada como se fosse um bastão, e passava assim a ser catalogado em grandes bibliotecas de papiros. Mas o que dizia esse livro em particular que tanto interessa a matemáticos e historiadores da ciência?

Esse notável papiro foi comprado em 1858 pelo advogado e egiptologista Alexander Rhind, em uma visita que fazia à cidade de Luxor. Adquirida em 1864 pelo Museu Britânico, a obra foi batizada de papiro de Rhind, e continua fascinando arqueólogos e historiadores.

Do que trata o papiro de Rhind? O pequeno trecho do papiro, que vemos na imagem acima, nos mostra que há triângulos, há o que parecem ser medidas dos lados. Há um retângulo, um trapézio, há o que parecem ser tabelas de números empilhados. Parece haver, apenas nesse pequeno trecho, muita coisa parecida com aquilo que chamamos de matemática. E o que mais tem o papiro?

O papiro contém dezenas de problemas de aritmética, frações, cálculo de áreas, volumes, progressões, repartições proporcionais, regra de três simples, equações lineares, trigonometria básica e geometria. É bastante coisa, é coisa suficiente para nos fazer imaginar uma longa tradição cultural transmitida e ampliada de geração a geração. Uma dessas tradições culturais, talvez a mais antiga de todas as tradições científicas, seja a da transmissão de conteúdos de matemática através de problemas ficcionais, desligados de qualquer consideração prática. Um dos problemas que o papiro discute em detalhes é o seguinte:

Sete casas contêm sete gatos. Cada gato mata sete ratos. Cada rato comeu sete espigas de grãos. Cada espiga de grãos teria produzido sete hekats (medidas) de trigo. Qual é o total de tudo isso?

Fonte: PICKOVER, C. The Math Book. p. 36.

Esse é um problema interessante, o início de uma tradição que persiste até hoje. Em particular, com o uso do número 7 em problemas parecidos que vêm aparecendo de maneira persistente em várias tradições científicas do mundo todo. Você saberia resolvê-lo?

O papiro tem outras interessantes características. É o mais antigo exemplar da história que contém símbolos para as operações matemáticas. Por exemplo, o sinal de mais era denotado por um par de pernas andando em direção ao número a ser adicionado (você consegue ver alguns na figura acima?). Isso nos mostra que a matemática é também uma linguagem que necessita de seu próprio código, sua própria notação, para além da notação da língua falada. Mas por que isso ocorre?

Discussão

Estudiosos não têm dúvidas de que o papiro de Rhind era uma cópia feita por Ahmes de outros papiros mais antigos. Ahmes fazia parte de uma escola de escribas, cujo treinamento consistia em copiar dezenas e dezenas de papiros em escrita hierática como parte de sua educação. Tudo isso nos leva a crer que as ciências matemáticas egípcias eram mais extensas e mais antigas do que o papiro de Rhind nos deixa antever.

Baseados no que vimos, o que podemos pensar das seguintes questões:

  1. Platão afirmava que a geometria teve início no Egito, a partir da experiência de medir áreas de plantações. No entanto, a construção das pirâmides exigiu muito mais do que o simples cálculo de áreas. Para que, afinal, você imagina que serviam os conhecimentos matemáticos dos egípcios?
  2. Por que os egípcios transmitiam seus conhecimentos matemáticos preferencialmente através de problemas recreativos?
  3. Egípcios eram muito bons em lidar com frações, principalmente com frações unitárias, aquelas que têm numerador igual a 1. Você seria capaz de expressar o número 0,575 como soma de 3 frações unitárias que tenham denominador menor do que 10?

Para saber mais

Procure saber os que significam:

  • papiro
  • escrita hierática
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História da matemática

Plimpton 322

A tabela de argila Plimpton 322 (c. 1.800. a.C.)
Fonte: tiny.cc/plimpton-322

Em 1922, um editor de Nova York de nome George Plimpton comprou de um comerciante displicente, por apenas 10 dólares, uma pequena tabuinha de argila com marcas feitas com algum tipo de estilete. Plimpton viu algum valor histórico na peça mas não soube precisar do que se tratava, e acabou doando a tabuinha à Universidade de Columbia. Foi então que os pesquisadores descobriram um dos mais fascinantes documentos da história da matemática na antiguidade.

A Plimpton 322 faz parte de uma ampla coleção de documentos escritos em argila da antiga civilização mesopotâmica, que floresceu entre os rios Tigre e Eufrates, na região onde hoje se encontra o Iraque. Datada de 1.800 a.C., a Plimpton 322 nos dá um diminuto vislumbre do que foi a matemática mesopotâmica e do grau elevado dos conhecimentos dos povos daquela região. Deles herdamos muitos conhecimentos, mas principalmente a divisão da circunferência em 360 partes e da hora em 60 minutos.

Mas os matemáticos e astrônomos mesopotâmicos sabiam muito mais. A Plimpton 322 é uma lista de ternos pitagóricos, uma sequência de três números que satisfazem o teorema de Pitágoras, como 3, 4 e 5, que formam os lados de um triângulo retângulo. As três primeiras colunas contêm os ternos, em notação sexagesimal, e a quarta mostra apenas os números de 1 a 15, o que mostra que os ternos estavam sendo sistematicamente coletados.

Como sempre, as interpretações sobre o artefato variam. A tabela poderia ter sido escrito para uma aula elementar de álgebra ou de trigonometria ou mesmo como um simples exercício de escrita cuneiforme por algum escriba aprendiz. De qualquer maneira, ficamos com a impressão que aquela tabela não era utilitária, ou seja, suspeitamos que a civilização que a produziu tinha preocupações com o conhecimento desinteressado, desligado de alguma aplicação prática imediata, e com o desenvolvimento do ferramental matemático em si mesmo, por seu próprio valor intelectual.

Como esses números foram gerados? Os matemáticos da Mesopotâmia conheciam as fórmulas que produziam os ternos pitagóricos ou a Plimpton 322 é uma mera compilação de ternos descobertos empiricamente? A tendência é aceitar a primeira hipótese, mas até que nossos estudos sejam realizados e novas descobertas sejam feitas, a questão permanece aberta.

Discussão

O que podemos aprender com a Plimpton 322? Esse número, 322, ligado ao nome Plimpton, nos indica que essa é apenas uma de uma longa série de tabuinhas de argila. Há 321 antes e há centenas depois. A civilização mesopotâmica, criadora de muitos dos mitos que ainda habitam nosso imaginário, conhecidos através dos hebreus que escreveram a Bíblia, certamente legaram muita ciência ao nosso mundo moderno. Algumas reflexões são possíveis:

  1. Uma vez criado um sistema numérico suficientemente complexo, será que ele adquire “vida própria”, sendo cultivado pelo seu valor intrínseco, além de necessidades puramente materiais?
  2. Como seria uma aula de matemática naquele tempo? Estariam esses conhecimentos destinados a figurar apenas nos escritos de uma casta de intelectuais e cientistas ou eram também acessíveis a mais pessoas através de um processo de educação sistemática?

Para saber mais

Alguns termos do texto não foram devidamente definidos. Esses termos são

  • ternos pitagóricos
  • notação sexagesimal
  • escrita cuneiforme

O que será que significam? Como funcionam? A internet pode ser sua amiga nesta hora!

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Antropologia História da matemática

O osso de Ishango

Vistas do osso de Ishango (c. 18.000 a.C.)

O osso de Ishango é um dos mais antigos artefatos “matemáticos” conhecidos. Encontrado em 1960 pelo geólogo belga Jean de Heinzelin (1920-1998) na localidade de Ishango, na atual República Democrática do Congo, esse pequeno osso de babuíno contém três conjuntos de marcas distintas, feitas por algum material cortante com intenções ainda hoje desconhecidas.

Segundo datações recentes, o osso teria entre 18.000 e 22.000 anos de idade, cerca de 10.000 anos mais antigo do que o início da agricultura e dos primeiros núcleos humanos permanentes conhecidos. Como ocorre com todo artefato arqueológico, uma série de especulações é imediatamente criada para dar algum sentido ao objeto encontrado. Partindo de uma visão moderna, nossa primeira interpretação é dizer que o autor das marcas estava “contando” alguma coisa. Mas há quem extrapole essa simples versão e diga muito mais.

A figura acima não nos deixa ver com precisão que são três os conjuntos distintos de marcas. Vamos a uma visão esquemática dos cortes:

Esquema do osso de Ishango
Fonte: tiny.cc/esquema-ishango

Observe algumas características dos três conjuntos de marcas:

  • No primeiro conjuntos, os números somam 48. Cada um dos dois conjuntos seguintes soma 60. Os números 48 e 60 são ambos divisíveis por 12;
  • No primeiro conjunto, encontramos números menores do que 10 e, no segundo, todos os números primos de 10 a 20.
  • No primeiro conjunto, vemos 3 marcas e depois seu dobro, 6; logo depois vemos 4 e seu dobro, 8, e por fim vemos 10 e sua metade, 5.
  • Nos dois últimos conjuntos, encontramos apenas números ímpares.

Seriam essas características suficientes para dizer que a pessoa que fez as marcas estava desenvolvendo algum tipo de pensamento matemático? Ou será que, segundo algumas interpretações, ela estaria contando os ciclos da lua? Se a pessoa que fez as marcas era mulher, estaria ela contando fases de seu ciclo menstrual? Não sabemos. Nenhuma dessas interpretações encontrou guarida definitiva entre arqueólogos e antropólogos.

Existem ossos mais antigos do que esses, como o famoso osso de Lebombo (c. 37.000 a.C.), mas nenhum com características tão marcantes. Até que outros artefatos com a mesma estrutura sejam encontrados, não poderemos dizer com certeza do que o osso de Ishango trata.

Discussão

O problema central da história da matemática é um problema de historiografia, de escrita da história. Como escrever a história da matemática? O que conta como matemática e o que não conta? Quais fatos são relevantes? Seria o osso de Ishango um fato da história da matemática? Afinal, o que é mesmo matemática, para que possamos classificar e historiar todo o material?

Diante disso, o osso de Ishango desperta alguns questionamentos:

  1. Riscos e entalhes em qualquer objeto, se feitos com algum padrão, contam como matemática? Não seriam, talvez, apenas arte?
  2. Seria possível que a pessoa que fez os entalhes no osso estivesse apenas passando tempo? A existência de marcas que vemos como possuindo alguma estrutura que nós chamamos de matemática possa ser obra de uma pessoa que estivesse apenas se divertindo?
  3. Você acredita que a pessoa que entalhou o osso tinha palavras para expressar quantidades?

Para saber mais

Alguns conceitos não foram bem explorados no texto. Deixo pra você procurar saber o que significam:

  • divisibilidade (como dizer que 60 é divisível por 12)
  • número primos

Uma busca na internet pode resolver suas dúvidas. A Wikipedia é sempre um bom começo.

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PostScript

Tangram em PostScript

Depois de 5 anos, retornei à linguagem PostScript, ainda uma de minhas favoritas, para realizar o desenho abaixo, um tangram pronto para ser recortado e usado.

O tangram é um quebra-cabeças muito popular em aulas de matemática. Recortados nas linhas brancas, 7 peças são obtidas, com as quais muitas figuras podem ser formadas. Uma procura pela internet mostrará centenas delas.

O código PostScript que gerou o desenho foi o seguinte:

newpath
0 0 moveto
500 0 lineto
500 500 lineto
0 500 lineto
closepath
fill

1 setgray
0.5 setlinewidth
2 setlinejoin

newpath
0 0 moveto
500 500 lineto
0 500 moveto
250 250 lineto
125 125 moveto
250 0 lineto
500 250 lineto
250 250 moveto
375 125 lineto
375 375 lineto
stroke

Se você não conhece PostScript, dê uma olhada neste livro para uma ótima introdução.

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Antropologia Matemática

Vivendo sem números

Vamos pensar um pouco agora sobre o que é matemática através de uma tribo indígena do Brasil, composta de pouco mais de trezentos e cinquenta membros: os pirahãs.

Pirahãs

A história que vamos contar é bastante conhecida de linguistas de todo o mundo. Em 1977, o então missionário, hoje linguista de fama internacional, Daniel Everett, veio dos Estados Unidos ao Brasil para realizar a tarefa nada original de cristianizar alguns índios. Em suas andanças pela Amazônia, Everett se deparou com uma tribo indígena que vivia às margens do rio Maici. Eles eram conhecidos como pirahãs, um grupo bastante isolado do restante da população local. Everett resolveu se estabelecer, com toda a família, entre eles.

Com o tempo e a convivência, Everett foi percebendo uma série de características interessantes da tribo. Eles não possuíam mitos de criação e não se lembravam de ancestrais anteriores a seus avós. Sua língua não contava com palavras para cores e, o que é mais importante, sua gramática contrariava as teorias do linguista e ativista político norte-americano Noam Chomsky, talvez o intelectual mais influente de todo o mundo. Esse é o ponto que torna mundialmente famoso esse pequeno grupo de pessoas: estão no centro de um longo, antigo e furioso debate sobre as origens da linguagem humana.

Mas o que nos interessa aqui, no entanto, é uma outra descoberta fundamental de Everett: os pirahãs não têm palavras para números. Chegam, no máximo, a utilizar uma única palavra, ‘hói’, para indicar ‘pouco’ ou ‘pequeno’. Uma, duas ou três pedras na mão são ‘hói’. Se forem bem pequenas, um punhado de vinte delas também são ‘hói’. Entre eles, a noção de quantidade parece inexistente.

Pesquisadores e antropólogos de todas as áreas e de todo o mundo têm testado a paciência dos pirahãs com inúmeras pesquisas que comprovam, sem sombra de dúvida, que eles não só não contam, como também não se interessam em aprender a contar. Nem mesmo apenas um, dois, três, como os índios xetás, também da Amazônia. Os pirahãs são um povo que não possui aritmética, mínima que seja.

Enquanto isso, livros e mais livros de divulgação científica espalham a ideia de que a noção de contagem é universal, que a noção de número é algo genético. Outros pesquisadores afirmam ainda que a marca distintiva da humanidade é sua capacidade de fazer matemática. E nos perguntamos, assim, o que significa matemática para esses autores…

Como em toda pesquisa antropológica, baseada na observação detalhada e na coleta extensa de dados, há quem discorde das teses de Everett. Até que a situação seja definitivamente esclarecida (se isso existe em antropologia e linguística), ficamos com a sugestão de que, afinal, a matemática não é uma característica comum à espécie humana, mas algo local, temporal, social, como tudo o mais na cultura.