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História da matemática Matemática

Pi

[katex]\pi[/katex] sendo calculado pelo método da exaustão de Arquimedes.
Fonte: Clipartmax

Com as possíveis exceções do 0 (zero) e do 1 (um), nenhum outro número é mais conhecido na matemática do que a constante [katex]\pi[/katex] (pi). Também nenhuma outra tem uma história tão fascinante.

Seu valor é aproximadamente 3,1415926… . Sua história é bem remota e deve ter começado em situações cotidianas. É possível, por exemplo, que povos antigos tenham observado que uma volta da roda de carroça faz a carroça avançar mais ou menos três vezes o valor do diâmetro da roda. É assim que [katex]\pi[/katex] passa a ser definido, como o número de vezes que devemos multiplicar a medida do diâmetro para encontrarmos a medida da circunferência. Matemáticos gostam de uma definição equivalente: [katex]\pi[/katex] é a razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo.

Matemáticos egípcios e mesopotâmicos conheciam bem o [katex]\pi[/katex]. No papiro de Rhind, [katex]\pi[/katex] tem o valor aproximado de 3,16045, enquanto os matemáticos da Mesopotâmia usavam o valor 3,125. Depois que estudiosos perceberam sua importância em praticamente todos os campos da matemática, a busca pelo seu valor exato deu início a uma das mais longas tradições científicas, o cálculo preciso de suas casas decimais. E essa luta continua firme e forte: em 29 de janeiro de 2020, Timothy Mullican alegou em seu blog ter batido o recorde mundial, com o cálculo de 50 trilhões (!) de casas decimais.

[katex]\pi[/katex] é um número irracional. Não pode ser escrito como a razão (divisão) de dois números inteiros. Embora a fração 22/7 dê [katex]\pi[/katex] com uma boa precisão (3,142857, com as casas decimais se repetindo indefinidamente), sabemos que não existe uma fração que gere todos os seus dígitos, ainda que frações sempre mais próximas possam ser encontradas. [katex]\pi[/katex] também é um número transcendente, ou seja, não é a raiz de nenhuma equação polinomial com coeficientes inteiros, como, por exemplo, [katex]x^2-5x+6=0[/katex]. Isso coloca [katex]\pi[/katex] em uma categoria especial de números estranhos e interessantes.

[katex]\pi[/katex] é uma letra grega, o que nos faz supor que foram os gregos os primeiros a utilizá-la para batizar a constante 3,1415926…. Mas esse é um engano comum: foi o matemático galês William Jones (1675 — 1749) que a nomeou assim, em um artigo de 1706. Por que [katex]\pi[/katex]? Porque essa é letra que tem o som de p na língua grega, e a primeira letra da palavra periferia. A história dos símbolos e da notação matemática é tema pitoresco que teremos a oportunidade de abordar ainda outras vezes.

Agora olhe para a figura no início desta postagem. A primeira figura, mais à esquerda, nos mostra uma circunferência na qual está inscrito um pentágono regular e circunscrito outro. Conseguimos calcular o perímetro do pentágono inscrito sabendo apenas o valor do raio da circunferência, assim como também conseguimos calcular o perímetro do pentágono circunscrito sabendo apenas do valor do raio. Mesmo sem os valores em mãos, podemos conjeturar acertadamente que o perímetro do pentágono inscrito é menor do que o perímetro da circunferência, e também que o perímetro do pentágono circunscrito é maior do que o perímetro da circunferência. Assim, o valor do perímetro da circunferência deve ser algum número entre esses dois valores.

Mas ainda é um valor muito ruim. E se aumentássemos o número de lados dos polígonos regulares inscritos e circunscritos para, por exemplo, como nos mostra a figura, para 6 e 8? Não nos parece que esses polígonos estão se transformando, eles mesmos, em uma aproximação da circunferência? Se conseguimos calcular o valor dos perímetros dos polígonos, podemos imaginar que, aumentando o número de lados, conseguiremos aproximar o valor de [katex]\pi[/katex] com quanta casas decimais quisermos. De fato, esse é o mecanismo básico do chamado método de exaustão, utilizado com sucesso por Arquimedes de Siracusa (c. 287 — c. 212 a.C.) e matemáticos posteriores para solucionar uma infinidade de questões semelhantes. Em particular, esse método era usado para realizar quadraturas, o cálculo de áreas de figuras curvilíneas, o que nos informa que o método da exaustão é um dos precursores da moderna integração.

Madhava de Sangamagrama (c. 1350 — c. 1425), o fundador da Escola de Matemática e Astronomia de Kerala, na Índia, é apenas um das centenas de matemáticos hindus frequentemente ignorados por historiadores. Ainda que tenhamos aprendido a reconhecer a genialidade de matemáticos não-europeus, foi apenas há pouco tempo que reconhecemos uma genial descoberta desse genial indiano, a série de Madhava: [katex]\frac{\pi}{4} = 1\ -\ \frac{1}{3} + \frac{1}{5}\ -\ \frac{1}{7} + \frac{1}{9}\ – \ldots [/katex] Mas o que essa série tem de especial?

O valor de [katex]\pi[/katex] sempre foi relacionado a questões geométricas, em especial àquelas envolvendo circunferências. Mas a fórmula de Madhava não faz nenhuma referência a círculos ou figuras curvilíneas. É uma série infinita, um conjunto infinito de números que, se somados, nos dão 1/4 do valor de [katex]\pi[/katex]. Assim, devemos a Madhava a “libertação” de [katex]\pi[/katex] de suas humildes origens geométricas para adentrar no mundo da análise matemática, da álgebra e da estatística, aparecendo aqui e ali de maneira fantasmagórica e surpreendente. Alguns séculos depois, essa série foi redescoberta pelo matemático alemão G. W. Leibniz (1646 — 1716). Hoje a série é conhecida por historiadores modernos como série de Madhava-Leibniz, ou apenas como série de Leibniz por matemáticos eurocêntricos empedernidos.

Discussão

  1. O cálculo de [katex]\pi[/katex] é um hobby nerd muito apreciado por programadores de computador e por competidores de campeonatos de memorização, capazes de recitar essa constante com centenas e centenas de casas decimais. Você consegue imaginar algum outro motivo que faz com que cientistas ainda se interessem pelo seu cálculo?
  2. Existe uma certa ansiedade de professores em ensinar as origens e o valor de [katex]\pi[/katex]. O peso da quantidade descomunal de conteúdos e da exiguidade do tempo e do interesse dos alunos fazem com que a maioria fracasse e acabe estimulando uma decoreba desenfreada de tudo que trate de matemática. Você conseguiria imaginar uma atividade significativa que ensinasse a importância e as origens de [katex]\pi[/katex] sem apelar para nenhum tipo de memorização?
  3. Alguns matemáticos sugeriram a introdução de uma outra constante, chamada [katex]\tau[/katex] (tau), no vocabulário dos matemáticos, valendo duas vezes o valor de [katex]\pi[/katex]. Assim, entre muitos outros argumentos, a fórmula da circunferência do círculo, [katex] C = 2\pi r[/katex] se tornaria simplesmente [katex]C = \tau r[/katex], revelando melhor a natureza da relação entre a circunferência e o raio do círculo, que é muito mais utilizado do que seu diâmetro. Pesquise um pouco sobre a [katex]\tau[/katex] e responda: será que o acréscimo dessa constante no vocabulário matemático resolveria algum tipo de problema de ensino?

Para saber mais

Acesse a Wikipedia para conhecer mais sobre

  • número irracional
  • número transcendente
  • método da exaustão
  • quadratura
  • série infinita
  • Madhava de Sangamagrama e a matemática indiana
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História da matemática

Euclides e seus Elementos

Fragmento dos Elementos no papiro de Oxirrinco (c. 100 d. C.)
Fonte: tiny.cc/elementos-euclides

Euclides (fl. c. 300 a.C.) foi um importante matemático grego que viveu em Alexandria, no Egito. É considerado popularmente como o “pai da geometria”, ainda que esse epíteto esteja errado em cada palavra.

Pouco se sabe sobre sua vida, exceto que desenvolveu sua obra sob o reinado de Ptolomeu I do Egito (323 – 283 a.C.). Mais do que geometria elementar, Euclides escreveu sobre a teoria dos espelhos, ótica e astronomia esférica. Mas é pela sua obra máxima, chamada de Elementos, que ele se imortalizou, exercendo a mais duradoura influência no pensamento humano jamais alcançada por outro cientista.

Euclides é melhor denominado como o sistematizador do método axiomático, a maneira de ordenar o conhecimento baseado em axiomas e teoremas. O método axiomático, que funciona muito bem na matemática, consiste em fundamentar todos os fatos sobre determinados objetos em cima de uma diminuta base de afirmações primitivas conhecidas como axiomas. A partir dos axiomas, novas afirmações são derivadas — os teoremas — por um poderoso motor intelectual cujas peças são as regras da lógica. Foi através desse método que Euclides ordenou em treze livros boa parte do conhecimento matemático elementar de sua época.

Os Elementos, traduzidos pela primeira vez diretamente do grego por Irineu Bicudo, e publicado no Brasil pela Editora da Unesp em 2009, está dividido em 13 livros:

  • O livro 1 contém 23 definições, 5 postulados e 9 noções comuns, e cobre tópicos importantes da geometria plana, como o teorema de Pitágoras, igualdade de ângulos e áreas, paralelismo, soma dos ângulos de um triângulo e a construção de várias figuras geométricas;
  • O livro 2 contém vários lemas (teoremas preparatórios para outros teoremas) relativos à igualdade de retângulos e quadrados, às vezes chamados de “álgebra geométrica”, e conclui com uma construção da proporção áurea e uma maneira de construir um quadrado com área igual a qualquer figura plana;
  • O livro 3 trata de círculos e suas propriedades. Mostra como encontrar seu centro, tratas de ângulos inscritos, tangentes, potência de pontos, e o teorema de Tales;
  • O livro 4 constrói o incírculo e o circuncírculo de um triângulo, assim como mostra a construção de polígonos regulares com 4, 5, 6 e 15 lados;
  • O livro 5, o primeiro dos chamados livros aritméticos, trata de proporções de magnitudes, apresenta a teoria altamente sofisticada da proporção, provavelmente desenvolvida por Eudoxo de Cnido (408 a.C — 355 a.C);
  • O livro 6 aplica a teoria das proporções à geometria plana, especialmente na construção e no reconhecimento de figuras semelhantes;
  • O livro 7 trata da teoria dos números elementares: divisibilidade, números primos e sua relação com números compostos, o algoritmo de Euclides para encontrar o maior divisor comum e como encontrar o mínimo múltiplo comum;
  • O livro 8 trata da construção de sequências geométricas de números inteiros;
  • O livro 9 aplica os resultados dos dois livros anteriores e prova a infinidade de números primos e apresenta a construção de todos os números perfeitos pares;
  • O livro 10 prova a irracionalidade das raízes quadradas de números inteiros não quadrados, como a raiz de 2, e classifica as raízes quadradas de segmentos incomensuráveis ​​em treze categorias distintas. Euclides apresenta o termo irracional, com um significado diferente do conceito moderno de número irracional. Ele também fornece uma fórmula para produzir ternas pitagóricas;
  • O livro 11 generaliza os resultados do livro 6 para figuras sólidas: perpendicularidade, paralelismo, volumes e semelhança de paralelepípedos;
  • O livro 12 estuda os volumes de cones, pirâmides e cilindros usando o método da exaustão, um precursor da integração, e mostra, por exemplo, que o volume de um cone é um terço do volume do cilindro correspondente. Conclui mostrando que o volume de uma esfera é proporcional ao cubo de seu raio (na linguagem moderna), aproximando seu volume por uma união de muitas pirâmides;
  • O livro 13, por fim, constrói os cinco sólidos platônicos regulares inscritos em uma esfera e compara as proporções de suas arestas com o raio da esfera.

Boa parte desses conteúdos são contribuições de matemáticos anteriores. A Euclides são reputados diversos resultados originais e muitas demonstrações, inclusive a belíssima demonstração do teorema de Pitágoras. Mas como foram ordenados todos esses conhecimentos?

Euclides começa o livro 1 com uma série de 23 definições controversas, como “ponto é aquilo de que nada e parte”, “linha é comprimento sem largura” e outras 21 definições. Logo depois, enuncia os 5 seguintes postulados, que modernamente chamamos de axiomas:

  1. Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto.
  2. Também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta.
  3. E, com todo centro e distância, descrever um círculo.
  4. E serem iguais entre si todos os ângulos retos.
  5. E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça ângulos interiores e do mesmo lado menores do que dois retos, sendo prolongadas as duas retas, ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual estão os menores do que dois retos.

Dos postulados acima, o quinto é o mais estranho e também o mais importante. Não tem a aparência de uma afirmação elementar, e nos faz suspeitar que seja um teorema deduzido dos postulados anteriores. De fato, foi isso o que matemáticos de todas as épocas tentaram: mostrar como deduzir o quinto postulado dos quatro anteriores. Esses esforços redundaram em geniais fracassos, mas ocasionaram o desenvolvimento das geometrias não-euclidianas, geradas quando o quinto postulado é substituído por outros. As geometrias não-euclidianas, longe de serem filhas de especulações desinteressadas de matemáticos puros, são usadas hoje em muitas áreas da tecnologia, principalmente na teoria da relatividade de Albert Einstein (1879 — 1955), que, entre outras coisas, garante o bom funcionamento do sistema de GPS em todo o planeta.

Após esses postulados, Euclides apresenta as “noções comuns”, nove axiomas supostamente aplicáveis a todos os ramos do conhecimento, como, por exemplo, “o todo é maior do que a parte” e “os dobros da mesma coisa são iguais entre si”. Sobre essa base de definições, postulados e noções comuns, centenas e centenas de teoremas são demonstrados, em um encadeamento lógico que encanta e convence.

Os Elementos tratam de matemática elementar, mas sua leitura não é nada fácil. A tradução de Irineu Bicudo, a primeira feita diretamente do grego, é tão idiossincrática, por assim dizer, que podemos considerá-la uma obra destinada a eruditos: só é recomendada para quem deseja aprender o grego de Euclides comparando-o com o português de Bicudo. Mas foi essa mesma a intenção do tradutor: estabelecer um padrão ouro para a tradução de textos da antiguidade grega. Esperamos que, futuramente, uma boa alma retraduza os Elementos tornando-o palatável a um público mais geral. E enquanto isso não ocorre, vamos refletir mais um pouco sobre algumas questões pertinentes aos Elementos e seu uso científico.

Discussão

  1. O método axiomático é uma das grandes conquistas da ciência ocidental. Sua aplicação em áreas diversas da matemática chegou a produzir intuições profundas sobre uma espantosa quantidade de assuntos. No entanto, ainda que persista na matemática, ele está bastante desgastado em outras disciplinas. Por que não seria esse o método ideal, por exemplo, para ordenar nossos conhecimentos médicos?
  2. A história do ensino de matemática é a história de um longo fracasso. Será que isso é devido à falta de uma organização escolar mais estrita de seus conteúdos, uma que favoreça as ligações internas e profundas entre eles?
  3. Observe as lista de conteúdos dos treze livros. Quais deles você acha que deveriam ser ensinados no ensino básico? Por quê?

Para saber mais

Pesquise uma pouco mais sobre os seguintes assuntos:

  • axiomas
  • lemas
  • teoremas
  • método axiomático
  • geometrias não-euclidianas
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Pitágoras e os pitagóricos

O teorema de Pitágoras e sua demonstração (em grego)
Fonte: tiny.cc/teorema-pitagoras

O teorema de Pitágoras é, sem dúvida, o mais conhecido teorema de toda a geometria, ensinado em todas as escolas e utilizado extensamente em toda a matemática. A pessoa à qual é atribuído, o filósofo grego Pitágoras de Samos (c. 570 — c. 495 a.C), no entanto, é bem menos conhecida.

Figura semilendária do século VI a.C., Pitágoras foi o líder de uma seita que acreditava, entre muitas outras coisas, que os números — puros, livres e incorruptíveis — eram alguma coisa próxima de entidades divinas, possuidoras de consciência e de influência direta na vida prática dos homens. Pitágoras e seus discípulos, conhecidos como pitagóricos, estão também entre os primeiros cientistas a exigir argumentos racionais para diversos fatos matemáticos conhecidos como teoremas. Eles deram início, juntamente com Tales de Mileto (c. 624 — 546 a. C.), considerado o primeiro filósofo ocidental, à forma de matemática dedutiva que hoje estudamos nas universidades.

A figura acima é a famosa demonstração do teorema de Pitágoras assim como aparece no longamente decantado livro Elementos, de Euclides de Alexandria (fl. c. 300 a.C.). A demonstração, no entanto, não é de Pitágoras, mas do próprio Euclides. Pitágoras não demonstrou com toda generalidade o teorema que leva o seu nome, mas apenas percebeu sua validade em casos particulares. Também não foi seu descobridor: os matemáticos mesopotâmicos conheciam as ternas pitagóricas e quase certamente conheciam sua expressão geométrica, assim como os egípcios, também excelentes geômetras.

Não se conhece nada que Pitágoras tenha escrito. Uma longa tradição lhe atribui muitos feitos, muitas descobertas, mas as primeiras obras escritas sobre sua vida só apareceram cerca de… 800 anos depois de sua morte! Em outras palavras, quase tudo o que se sabe dele e de sua fraternidade é fruto de transmissão oral, um telefone sem fio bastante persistente, mas nada confiável. Platão (428 — 348 a.C.), o grande pai da filosofia ocidental, foi profundamente influenciado pela tradição pitagórica. E daí, pela influência de Platão, temos o pitagorismo ainda evidente em nossa cultura.

Segundo a tradição — ao falarmos de Pitágoras, estaremos sempre nos referindo a essa tradição — Pitágoras e seus discípulos não foram simples místicos em busca de um ritual, mas também cientistas sagazes. Eles observaram, por exemplo, que cordas vibrantes tocadas juntas produziam sons harmoniosos, agradáveis ao ouvido, se seus tamanhos mantinham razões expressas por inteiros, preferencialmente pequenos, como 1/2, 2/3 e 3/4. A teoria musical que ainda hoje estudamos teve início com essas simples observações.

Os pitagóricos estudaram também propriedades dos números figurados, como os números triangulares, retangulares e pentagonais, sugerindo diversas relações entre eles. Descobriram os números perfeitos, aqueles que são a somas de seus divisores próprios, como o 6 (divisores próprios: 1, 2 e 3, e daí 6 = 1 + 2 + 3) e 28 (divisores próprios: 1, 2, 4, 7 e 14, e daí 28 = 1 + 2 + 4 + 7 + 14).

Essa sanha aritmética levou Pitágoras a afirmar que “tudo é número”, um dogma religioso rapidamente refutado pela famosa crise dos incomensuráveis. De maneira simplificada, essa crise se originou com a descoberta de que números como a raiz quadrada de 2 ou de 5 não podem ser expressos como uma razão (divisão) entre dois números inteiros. No fim do choque criado por essa descoberta, a sociedade pitagórica não existiria mais, mas sua poderosa influência criativa pode ser sentida ainda hoje em diversos campos das artes, da filosofia e das ciências.

Discussão

Os pitagóricos estão no fundamento e no coração de muito do que veio a ser conhecido como filosofia ocidental. Sua história continua a inspirar místicos e cientistas, admirados com a candente originalidade de suas contribuições. E como tudo na história, os pitagóricos levantam diversas questões:

  1. Juntamente com Tales de Mileto, Pitágoras e seus discípulos introduziram na matemática os primeiros exemplos de argumentos puramente racionais conhecidos como demonstrações. Os povos mesopotâmicos e egípcios não chegaram a conhecer tais instrumentos intelectuais. Será, então, que a ideia de demonstração deveria ser ensinada nas escolas, uma vez que muito da matemática utilitária de que necessitamos sobrevive sem ela?
  2. Em sua opinião, existe alguma relação necessária entre matemática e misticismo, ou isso é apenas uma característica particular dos pitagóricos?
  3. A numerologia que vemos em livros e sites da internet, promovendo poderes extraordinários de certos números, é uma descendente contemporânea do misticismo aritmético pitagórico. Você consegue imaginar algum argumento concreto que a justifique?

Para conhecer mais

Você saberia dizer o que significa, com segurança, o que é:

  • demonstração
  • teorema
  • matemática dedutiva
  • número figurado
  • incomensuráveis
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O papiro de Rhind

Um trecho do papiro de Rhind (c. 1650 a.C.)
Fonte: tiny.cc/papiro-rhind

Por volta de 1.650 a.C., um certo escriba egípcio chamado Ahmes (ou Amósis) finalizou aquela que seria não a mais antiga, mas a mais notável obra de matemática egípcia de que temos conhecimento: um livro escrito sobre uma imensa folha de 5,5 metros por 30 cm de altura, feita com tiras prensadas do caule de uma planta chamada papiro. Finalizada a escrita, essa longa folha era então enrolada e transportada como se fosse um bastão, e passava assim a ser catalogado em grandes bibliotecas de papiros. Mas o que dizia esse livro em particular que tanto interessa a matemáticos e historiadores da ciência?

Esse notável papiro foi comprado em 1858 pelo advogado e egiptologista Alexander Rhind, em uma visita que fazia à cidade de Luxor. Adquirida em 1864 pelo Museu Britânico, a obra foi batizada de papiro de Rhind, e continua fascinando arqueólogos e historiadores.

Do que trata o papiro de Rhind? O pequeno trecho do papiro, que vemos na imagem acima, nos mostra que há triângulos, há o que parecem ser medidas dos lados. Há um retângulo, um trapézio, há o que parecem ser tabelas de números empilhados. Parece haver, apenas nesse pequeno trecho, muita coisa parecida com aquilo que chamamos de matemática. E o que mais tem o papiro?

O papiro contém dezenas de problemas de aritmética, frações, cálculo de áreas, volumes, progressões, repartições proporcionais, regra de três simples, equações lineares, trigonometria básica e geometria. É bastante coisa, é coisa suficiente para nos fazer imaginar uma longa tradição cultural transmitida e ampliada de geração a geração. Uma dessas tradições culturais, talvez a mais antiga de todas as tradições científicas, seja a da transmissão de conteúdos de matemática através de problemas ficcionais, desligados de qualquer consideração prática. Um dos problemas que o papiro discute em detalhes é o seguinte:

Sete casas contêm sete gatos. Cada gato mata sete ratos. Cada rato comeu sete espigas de grãos. Cada espiga de grãos teria produzido sete hekats (medidas) de trigo. Qual é o total de tudo isso?

Fonte: PICKOVER, C. The Math Book. p. 36.

Esse é um problema interessante, o início de uma tradição que persiste até hoje. Em particular, com o uso do número 7 em problemas parecidos que vêm aparecendo de maneira persistente em várias tradições científicas do mundo todo. Você saberia resolvê-lo?

O papiro tem outras interessantes características. É o mais antigo exemplar da história que contém símbolos para as operações matemáticas. Por exemplo, o sinal de mais era denotado por um par de pernas andando em direção ao número a ser adicionado (você consegue ver alguns na figura acima?). Isso nos mostra que a matemática é também uma linguagem que necessita de seu próprio código, sua própria notação, para além da notação da língua falada. Mas por que isso ocorre?

Discussão

Estudiosos não têm dúvidas de que o papiro de Rhind era uma cópia feita por Ahmes de outros papiros mais antigos. Ahmes fazia parte de uma escola de escribas, cujo treinamento consistia em copiar dezenas e dezenas de papiros em escrita hierática como parte de sua educação. Tudo isso nos leva a crer que as ciências matemáticas egípcias eram mais extensas e mais antigas do que o papiro de Rhind nos deixa antever.

Baseados no que vimos, o que podemos pensar das seguintes questões:

  1. Platão afirmava que a geometria teve início no Egito, a partir da experiência de medir áreas de plantações. No entanto, a construção das pirâmides exigiu muito mais do que o simples cálculo de áreas. Para que, afinal, você imagina que serviam os conhecimentos matemáticos dos egípcios?
  2. Por que os egípcios transmitiam seus conhecimentos matemáticos preferencialmente através de problemas recreativos?
  3. Egípcios eram muito bons em lidar com frações, principalmente com frações unitárias, aquelas que têm numerador igual a 1. Você seria capaz de expressar o número 0,575 como soma de 3 frações unitárias que tenham denominador menor do que 10?

Para saber mais

Procure saber os que significam:

  • papiro
  • escrita hierática
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História da matemática

Plimpton 322

A tabela de argila Plimpton 322 (c. 1.800. a.C.)
Fonte: tiny.cc/plimpton-322

Em 1922, um editor de Nova York de nome George Plimpton comprou de um comerciante displicente, por apenas 10 dólares, uma pequena tabuinha de argila com marcas feitas com algum tipo de estilete. Plimpton viu algum valor histórico na peça mas não soube precisar do que se tratava, e acabou doando a tabuinha à Universidade de Columbia. Foi então que os pesquisadores descobriram um dos mais fascinantes documentos da história da matemática na antiguidade.

A Plimpton 322 faz parte de uma ampla coleção de documentos escritos em argila da antiga civilização mesopotâmica, que floresceu entre os rios Tigre e Eufrates, na região onde hoje se encontra o Iraque. Datada de 1.800 a.C., a Plimpton 322 nos dá um diminuto vislumbre do que foi a matemática mesopotâmica e do grau elevado dos conhecimentos dos povos daquela região. Deles herdamos muitos conhecimentos, mas principalmente a divisão da circunferência em 360 partes e da hora em 60 minutos.

Mas os matemáticos e astrônomos mesopotâmicos sabiam muito mais. A Plimpton 322 é uma lista de ternos pitagóricos, uma sequência de três números que satisfazem o teorema de Pitágoras, como 3, 4 e 5, que formam os lados de um triângulo retângulo. As três primeiras colunas contêm os ternos, em notação sexagesimal, e a quarta mostra apenas os números de 1 a 15, o que mostra que os ternos estavam sendo sistematicamente coletados.

Como sempre, as interpretações sobre o artefato variam. A tabela poderia ter sido escrito para uma aula elementar de álgebra ou de trigonometria ou mesmo como um simples exercício de escrita cuneiforme por algum escriba aprendiz. De qualquer maneira, ficamos com a impressão que aquela tabela não era utilitária, ou seja, suspeitamos que a civilização que a produziu tinha preocupações com o conhecimento desinteressado, desligado de alguma aplicação prática imediata, e com o desenvolvimento do ferramental matemático em si mesmo, por seu próprio valor intelectual.

Como esses números foram gerados? Os matemáticos da Mesopotâmia conheciam as fórmulas que produziam os ternos pitagóricos ou a Plimpton 322 é uma mera compilação de ternos descobertos empiricamente? A tendência é aceitar a primeira hipótese, mas até que nossos estudos sejam realizados e novas descobertas sejam feitas, a questão permanece aberta.

Discussão

O que podemos aprender com a Plimpton 322? Esse número, 322, ligado ao nome Plimpton, nos indica que essa é apenas uma de uma longa série de tabuinhas de argila. Há 321 antes e há centenas depois. A civilização mesopotâmica, criadora de muitos dos mitos que ainda habitam nosso imaginário, conhecidos através dos hebreus que escreveram a Bíblia, certamente legaram muita ciência ao nosso mundo moderno. Algumas reflexões são possíveis:

  1. Uma vez criado um sistema numérico suficientemente complexo, será que ele adquire “vida própria”, sendo cultivado pelo seu valor intrínseco, além de necessidades puramente materiais?
  2. Como seria uma aula de matemática naquele tempo? Estariam esses conhecimentos destinados a figurar apenas nos escritos de uma casta de intelectuais e cientistas ou eram também acessíveis a mais pessoas através de um processo de educação sistemática?

Para saber mais

Alguns termos do texto não foram devidamente definidos. Esses termos são

  • ternos pitagóricos
  • notação sexagesimal
  • escrita cuneiforme

O que será que significam? Como funcionam? A internet pode ser sua amiga nesta hora!