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A origem da palavra “matemática”

Ao contrário do que possa parecer, o significado da palavra “matemática” jamais foi estabelecido de maneira definitiva. Essa é uma observação importante, e corrobora a percepção de que o conjunto das coisas a que chamamos de matemática, seja o que isso for, não está bem definido.

Em vez de tentar definir o que seja matemática, vamos dar um passo atrás, mais modesto, e nos perguntar simplesmente: quando surgiu e a que se associou, durante sua longa história, a palavra “matemática”?

Antes da resposta, uma advertência: conhecer a origem da palavra não é o mesmo que conhecer a origem da coisa – no caso, a matemática – assim como também não implica dizer que matemática é hoje aquilo que foi um dia associado ao seu nome. Palavras e seus significados mudam com o tempo, e “matemática” não escapa a esse processo.

É costume suspeitar que os nomes das mais diversas ciências tenham origem em palavras gregas. Com exceção de um ou outro, como química, um palavra de origem árabe, a suspeita em geral se confirma: física, história, geografia e muitas outras são palavras derivadas de raízes gregas. Não deve nos espantar que matemática também o seja.

Nossa análise começa com a raiz grega math, ligada a noções como aprender e conhecer. Dessa raiz, muitas palavras são derivadas. Por exemplo, o verbo mantháno, que significa eu aprendo, eu conheço. Quem aprende é um mathetés, um aprendiz. Aquilo que um mathetés aprende é um máthema, um objeto de aprendizagem, objeto de conhecimento, cujo plural é mathémata. De máthema formamos o adjetivo mathematiké, que significa relativo ao conhecimento. Do adjetivo mathematiké derivamos o substantivo plural mathematiká, que se traduz como as coisas cognoscíveis. Este é o significado original de matemática: as coisas cognoscíveis, as coisas que podem ser conhecidas.

Observe que à palavra máthema se associa a um significado amplo. Tradutores costumam traduzi-la também como ciência, conhecimento ou mesmo matemática, segundo o contexto. No entanto, desde os tempos de Pitágoras (c. 570 – c. 495 a.C.), havia uma tendência a restringir seu significado a apenas alguns mathémata, como a aritmética, a geometria, a astronomia e a música, que viriam a ser conhecidos conjuntamente como quadrivium (a via quádrupla, em latim). Platão (428 – 348 a.C.) tendia a considerar esses assuntos como os mais importantes mathémata. Afirmava, porém, em seu livro República, que o principal máthema era a Ideia do Bem (Platão, 1990: 505a). Aristóteles (384-322 a.C.), o principal e mais influente discípulo de Platão, definia a matemática como a ciência da quantidade, e daí notamos o início da constituição do núcleo conceitual que serviria posteriormente para selecionar e classificar, dentre os mais diversos mathémata, aqueles que seriam ditos matemáticos.

Apesar da influência de Platão e Aristóteles, a restrição do significado não ocorreu como imaginamos. O filósofo grego Sexto Empírico (c. 160 – c. 210 d.C.), que viveu cerca de seis séculos depois de Platão, usava o termo matemático para designar aqueles que hoje chamamos de professores. Em sua obra Contra os matemáticos, Sexto Empírico envidou uma crítica aos professores de gramática, retórica, geometria, aritmética, astrologia, música, lógica, física e ética. Todos esses profissionais, dedicados ao estudo e ao ensino dessas disciplinas, eram considerados matemáticos: estudavam e ensinavam mathémata.

E o processo de significação continuou. Gramáticos, retóricos e éticos deixaram de ser chamados de matemáticos enquanto o quadrivium –  aritmética, geometria, astronomia e música –  se tornava um critério para decidir o que é e o que não é matemática. O que se assemelhasse a algum dos mathémata do quadrivium, ou deles faziam uso, seria dito matemática. Mas será que esse critério se estabeleceria como definitivo?

Historicamente, temos nos deparado com problemas e situações que continuamente exigem a criação novas categorias e de novas lógicas que reordenem a massa de nossos conhecimentos. Por exemplo, o trabalho atual dos linguistas consiste em localizar nas línguas padrões repetitivos e suficientemente estáveis que são formalizados em uma linguagem a que chamaríamos de matemática. O que pensar disso? Um rápido exercício de futurologia, pensando acerca do que será considerado matemática daqui a, digamos, 100 anos, nos deixa com a questão: será que o significado de matemática voltará a ser tão amplo como o foi uma vez com Sexto Empírico?

Essas considerações nos indicam que a palavra matemática está sujeita, como toda palavra, a uma dinâmica de inflação e deflação de significado: às vezes bastante amplo, às vezes mais restrito. É como uma lenta respiração que leva séculos para se realizar.

É importante saber também que o significado da palavra matemática não é estabelecido por obra de um filósofo ou de um cientista particular, mas pela comunidade que a estuda e a utiliza. Significados não sou obras de indivíduos, mas de sociedades e de instituições que os selecionam em um processo semelhante ao da evolução biológica. A vida das palavras, assim com a dos seres vivos, está sempre indeterminada, e ligada a seu entorno social e material.

Por Frederico Lopes

Frederico Andries Lopes é doutor em Educação Matemática pela UNESP/Rio Claro e professor associado do Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá.

É tradutor de textos antigos de matemática escritos principalmente em latim. Já publicou livros sobre o uso educativo de linguagens de programação, sobre gramática latina e história da matemática.

É pai orgulhoso dos trigêmeos Henrique, Ricardo e Valquíria e das gêmeas Laura e Leonora. Cuidar dessa turma é sua principal atividade. Tudo o mais são distrações e difficiles nugae.