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O poder das demonstrações

Jim Holt, no prólogo de seu interessantíssimo livro Por que o mundo Existe?, redige uma rápida demonstração “para pessoas modernas e muito ocupadas” sobre por que existe algo e não nada:

Suponhamos que não houvesse nada. Nesse caso, não existiriam leis, pois as leis, afinal, são algo. Se não houvesse leis, tudo seria permitido. Se tudo fosse permitido, nada seria proibido. Assim, se não houvesse nada, nada seria proibido. O nada é, portanto, autoproibitivo.
Logo, deve existir algo. Quod erat demonstrandum.

Essa demonstração, é claro, não é nem vagamente convincente. Nem foi escrita para convencer ninguém, mas para expôr a veia do problema de se garantir a existência de algo por meio de palavras e conceitos enfileirados em forma lógica, assim como as muitas “demonstrações” da existência de deus. Mas não é esse o ponto que queremos ressaltar no momento.

Uma demonstração é um encadeamento de proposições segundo um esquema lógico, que começa com algumas proposições assumidamente verdadeiras, em certo sentido mais “primitivas” do que as proposições intermediárias, e chega a uma proposição final, o teorema a ser demonstrado. Mas o que se ganha quando se chega ao fim da demonstração? E por que as demonstrações mais eficazes seguem a forma lógica da matemática grega, essa que estudamos na escola? Existem outras lógicas?

Uma demonstração matemática, como se diz, estende a verdade dos axiomas aos teoremas, e lhes dá solidez. Em outras palavras, se você aceita os axiomas da teoria matemática em questão e as regras de demonstração da lógica matemática, a suposta verdade dos teoremas é inegável.

Há dois problemas com isso. O primeiro, é garantir que os axiomas sejam sólidos e aceitos como as premissas de nosso discurso; o segundo, é aceitar as regras dedutivas da lógica matemática. Como é fácil perceber a partir de nossa prática argumentativa diária, nem começamos uma discussão expondo nossos pressupostos, nem raciocinamos segundo a lógica matemática. A argumentação comum diverge decididamente desse esquema argumentativo.

Duas atitudes podem ser tomadas diante do fato que divergimos da lógica em nossa argumentação cotidiana: a primeira, é condenar toda argumentação que não seja lógica; a segunda, é perceber que a lógica matemática é só mais uma entre as possíveis lógicas existentes. Com esse relativismo, no entanto, podemos desistir de qualquer segurança em tudo aquilo que fazemos que seja mediado por uma linguagem.

Há uma terceira via a esse aparente desconcerto, uma descrição mais fiel do que presenciamos em nosso dia a dia. Na argumentação comum, frequentemente utilizamos esquemas lógicos de argumentação, e frequentemente falhamos com eles. Sim, usamos mal a lógica. Outra observação é que a maioria dos argumentos não são baseados em esquemas lógicos, mas são válidos do ponto de vista do que interessa, persuadir e convencer o adversário. Em outras palavras, tanto a lógica matemática é violada na argumentação, quanto ela não pode chamar para si o papel de juíza diante da pressa e da urgência da argumentação cotidiana. É um instrumento que deve ser bem usado, mas não é o único.


P.S.: e expressão Quod erat demonstradum significa, literalmente, aquilo que devia ser demonstrado. No passado, era usada em demonstrações matemáticas, abreviada como Q.E.D., e indicava que a demonstração havia com sucesso chegado ao fim.

Por Frederico Lopes

Frederico Andries Lopes é doutor em Educação Matemática pela UNESP/Rio Claro e professor associado do Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá.

É tradutor de textos antigos de matemática escritos principalmente em latim. Já publicou livros sobre o uso educativo de linguagens de programação, sobre gramática latina e história da matemática.

É pai orgulhoso dos trigêmeos Henrique, Ricardo e Valquíria e das gêmeas Laura e Leonora. Cuidar dessa turma é sua principal atividade. Tudo o mais são distrações e difficiles nugae.