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História da matemática

Zero

O número 605 com caracteres Khmer (Camboja, c. 683)
Fonte: Wikimedia Commons

Disputas históricas raramente são definitivas. Até que novos documentos ou vestígios sejam descobertos e novas interpretações sejam propostas, a história oficial se mantém em uma espécie de limbo narrativo, aguardando ser reescrita por jovens historiadores em busca de um lugar ao sol. Com a história do zero não é diferente.

É discutível se os matemáticos do Egito e da Mesopotâmia conheciam o conceito de zero, mas certamente não possuíam um símbolo para representá-lo. No Egito, construtores marcavam o nível do solo, o nível zero, com um símbolo, mas esse símbolo não era usado em seu sistema de numeração. Os astrônomos da Mesopotâmia deixavam espaços no meio dos números para indicar o zero, o que, obviamente, gerava um enorme problema de leitura. Como saber, por exemplo, se o número 2 1 era 21, 201 ou 2001? Além disso, um simples número como 3 poderia indica 3, 30, 300 ou mais, pois nunca sabemos quantos espaços à direita o escriba teve a intenção de deixar.

Todo esse problema aparece quando usamos a notação posicional para registrar números, ou seja, quando um mesmo algarismo tem valor diferente dependendo da posição que ocupa. O número 55 é feito por dois algarismos iguais, mas o da esquerda vale dez vezes mais do que o da direita. A numeração romana que usamos ainda hoje não é estritamente posicional, e este é apenas um dos sistemas criados na história em que a posição não desempenha papel fundamental.

Apenas no século passado, historiadores europeus voltaram seus olhos para as contribuições científicas de povos distantes da bacia mediterrânea, como indianos, chineses e maias. E o interessante é que foram exatamente esses os primeiros a reconhecer a utilidade de um símbolo para o zero em suas notações.

Por volta de 665, os maias já tinham um símbolo para o zero. Mas, por razões óbvias, isso não influenciou em nada ciência do Velho Mundo. Coube aos indianos realizar o feito de reinventar e difundir um símbolo para o zero.

O zero já era comum na matemática indiana por volta do ano 650, uma época de ouro para as ciências naquela região. Três matemáticos se destacavam: Brahmagupta (c. 598 – c. 668), Bhaskara (c. 600 – c. 680), conhecido por sua célebre forma, e Mahavira (c. 800 – c. 870), já de uma geração posterior. Todos os três usavam o zero em operações matemáticas. Brahmagupta afirmava, por exemplo, que um número subtraído dele mesmo resultava em zero, e que qualquer número multiplicado por zero é zero. Isso nos parece demasiadamente óbvio hoje, mas foi um grande feito para a época.

Levado ao Ocidente pelos árabes, o símbolo para o zero dos matemáticos indianos era como o nosso, apenas menor e elevado na linha de escrita. Foi apenas em 1202, com o Liber Abaci (O livro do ábaco) de Leonardo de Pisa (c. 1170 – c. 1240/1250), que os algarismos indo-arábicos fizeram sua entrada definitiva na ciência ocidental, desbancando as terríveis dificuldades das operações com os números romanos ou com as pedrinhas usadas nos ábacos medievais da época.

Discussão

  1. O zero é importante não só na aritmética, mas também na álgebra. Você consegue imaginar outras utilidades para ele além daquelas descritas aqui?
  2. Existem diversos sistemas de numeração no mundo, tanto históricos quanto modernos, com diversas bases. O nosso, de base 10, possui 10 símbolos distintos. Outro, muito usado na moderna computação, usa a base hexadecimal, com todos os conhecidos 10 algarismos indo-arábicos mais as letras A, B, C, D, E e F. Pesquise por que foram criados e responda: seria conveniente introduzir esse sistema nas escolas básicas para melhor adaptar os alunos ao universo da moderna computação?
  3. Tente somar os números romanos CCXXIX com DXLVIII, sem convertê-los para decimais, e diga se isso tornou seu dia mais feliz.

Para saber

Que tal pesquisar mais um pouco sobre:

  • notação posicional
  • ábaco medieval
  • algarismos indo-arábicos
  • numeração hexadecimal

Por Frederico Lopes

Frederico Andries Lopes é doutor em Educação Matemática pela UNESP/Rio Claro e professor associado do Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá.

É tradutor de textos antigos de matemática escritos principalmente em latim. Já publicou livros sobre o uso educativo de linguagens de programação, sobre gramática latina e história da matemática.

É pai orgulhoso dos trigêmeos Henrique, Ricardo e Valquíria e das gêmeas Laura e Leonora. Cuidar dessa turma é sua principal atividade. Tudo o mais são distrações e difficiles nugae.